12 abril 2011

Cultura de doenças

Uso criativo de células-tronco pode acelerar o desenvolvimento de drogas para enfermidades debilitantes

por Stephen S. Hall

Em 26 de junho de 2007, Wendy Chung, diretora de genética clínica da Columbia University, foi ao bairro nova-iorquino de Queens com um pedido delicado para duas irmãs croatas, de 82 e 89 anos: a doação de algumas células de sua pele para um experimento ambicioso e incerto. Se fosse bem-sucedido, o teste prometia uma dupla compensação. Primeiro, poderia acelerar a busca por tratamentos para a doença incurável que afeta a família das irmãs. Segundo, permitiria estabelecer um novo e valioso uso para as células-tronco – células não especializadas capazes de originar vários tipos diferentes de células no corpo. “Tivemos um almoço muito agradável e voltamos para casa para fazer as biópsias”, lembra Chung.

As irmãs sofriam de esclerose lateral amiotrófica (ELA), distúrbio neurodegenerativo e lentamente paralisante, também conhecido como doença de Lou Gehrig (referência ao jogador de beisebol americano, vítima da doença em 1939, morto dois anos depois). A mais velha mostrava poucos sinais da doença, mas a outra tinha dificuldade para andar e deglutir. Embora os casos de ELA não sejam, em sua maioria, hereditários, vários membros dessa família foram afetados, pois herdaram a mutação de uma forma mais branda da doença, de lento progresso. Chung rastreou-a por várias gerações da família na Europa e nos Estados Unidos. “A doença de Lou Gehrig não é uma maneira bonita de morrer”, conta. “Cada vez que a família se reunia nos funerais, os membros da geração mais nova pensavam se seriam os próximos.”

Em poucos minutos, Wendy realizou a biópsia – duas fatias de pele, com 3 milímetros de diâmetro cada, da parte interna do braço. As células dessas amostras, assim como a de dezenas de outros doadores com ELA e voluntários saudáveis, foram quimicamente tratadas para formar células-tronco pluripotentes induzidas (iPS). Ou seja, transformaram-se em neurônios motores, células nervosas que controlam os músculos e são afetadas pela ELA. As culturas de tecidos produzidas mostraram os mesmos defeitos moleculares que fi zeram seus doadores adoecer.

Em outras palavras, os pesquisadores tinham recriado a doença em uma placa de Petri. Com isso, poderiam estudar o que ocorre nas células nervosas dos pacientes e tentar desenvolver drogas eficientes. Se bem-sucedido, o cultivo das células em laboratório permitiria compreender melhor diversas doenças e encontrar medicamentos mais eficazes. Isso porque seria possível testá-las em culturas feitas sob medida e verificar sua toxicidade. As células-tronco induzidas estão sendo também usadas para mimetizar dezenas de enfermidades, incluindo a anemia falciforme, diversas doenças hemáticas e o Parkinson. Pesquisadores alemães já criaram células cardíacas que batem irregularmente, imitando vários tipos de arritmia cardíaca. Indústrias farmacêuticas, já atentas às células-tronco como empreendimento comercial, começam a mostrar maior interesse, porque o desenvolvimento de doenças na placa de Petri complementa a forma tradicional da descoberta de drogas industriais.

O primeiro fruto do experimento com ELA foi publicado em 2008. Como na maioria dos casos de inovação, o sucesso dependia não apenas de a ideia ser boa, mas de as pessoas certas aderirem a ela. Nesse caso, a equipe, além de Wendy, incluía Lee L. Rubin, egresso da indústria de biotecnologia que se tornou chefe de medicina translacional do Instituto de Células-Tronco de Harvard, e Kevin C. Eggan, pesquisador de células-tronco de Harvard que colaborava com Christopher E. Henderson e outros especialistas em neurônios motores na Columbia University.

NOVO PAPEL

AS CÉLULAS-TRONCO DESSES ESTUDOS não devem ser confundidas com as embrionárias – derivadas de fetos em fase inicial de desenvolvimento e criadas em laboratório pela primeira vez há 12 anos, por James A. Thomson e seus colegas da University of Wisconsin-Madison. Essas células primordiais tinham resistência biológica para se renovar perpetuamente e versatilidade para se transformar em qualquer tipo de célula no corpo. A possibilidade de usá-las para criar transplantes sob medida para qualquer doença, de Parkinson a diabetes, deu esperanças a muita gente, sobretudo pacientes com enfermidades incuráveis.

Mas dois problemas também emergiram. Primeiro, um grande debate público sobre a ética da pesquisa com células-tronco politizou a ciência e diminuiu a pesquisa; a tecnologia levantava questões morais porque exigia a destruição de embriões humanos para coleta de células-tronco embrionárias. O debate culminou com o anúncio do então presidente americano George W. Bush em agosto de 2001 de que os Institutos Nacionais de Saúde limitariam o financiamento a apenas algumas das linhas de pesquisas com células-tronco embrionárias já existentes. Essa medida impediu efetivamente a geração de células-tronco adicionais, incluindo as específicas para algumas doenças. Em resposta, cientistas proeminentes nas universidades Harvard, Columbia e Stanford, juntamente com grupos de defesa dos pacientes como o Project ALS e a New York Stem Cell Foundation, criaram laboratórios independentes para dar sequência às pesquisas com financiamento privado. Em 2009, a administração Obama relaxou as regras acerca das células-tronco, mas a decisão de uma corte federal de 2010 revogou novamente o apoio dos Institutos Nacionais de Saúde, deixando a incerteza científica e o caos financeiro nesse campo de pesquisa.

O segundo problema era científico. Como lembra Valerie Estess, diretora científica do Project ALS, havia uma corrida para testar a ideia de que as células especializadas derivadas das células-tronco poderiam ser simplesmente transplantadas em pessoas (ou animais) doentes como terapias celulares para curar diversas doenças. “O grande sonho”, explica, “era derivar neurônios motores de células-tronco, aí seria apenas introduzi-los no cérebro ou na espinha, e os pacientes se levantariam e começariam a dançar.” Mas não foi o que aconteceu em repetidos experimentos com animais. “Do início ao fi m”, lamenta, “essas experiências fracassaram.”

Em 2002, Thomas M. Jessell, Hynek Wichterle e sua equipe de Columbia publicaram um artigo marcante no periódico Cell detalhando os ingredientes e procedimentos para levar as células-tronco embrionárias a se tornarem neurônios motores por um caminho biológico. O pesquisador que viu nesse trabalho a perspectiva de uso diferente das células-tronco foi Rubin. Ele percebeu que o cultivo de uma doença em laboratório oferecia uma forma revolucionária de descobrir drogas. E, ao contrário de vários cientistas, ele sabia algo sobre isso; durante um trabalho anterior,havia trabalhado com uma molécula que viria a se tornar a droga bilionária contra a esclerose múltipla – Tysabri.

Ao saber dos resultados da pesquisa de Jessell e Wichterle, Rubin rascunhou um plano de negócios para um novo tipo de instituto de células-tronco, “cujo foco,” segundo ele, “não fosse a terapia celular – em que todos os biólogos da área estavam interessados – as o uso das células-tronco para descobrir drogas”. Nessa época, os financiadores não queriam saber da ideia. Então, Rubin desenvolveu-a na Curis, empresa de biotecnologia em que trabalhava com a atrofia muscular espinhal, uma doença motora neuronal infantil, com patologia similar à ELA. Quando a Curis decidiu abandonar o projeto em 2006, ele abandonou a biotecnologia e aderiu à ideia de cultivar doenças em laboratório em Harvard.

Pouco depois, o biólogo japonês Shinya Yamanaka descobriu uma técnica que iria transformar tanto a biologia quanto a política em torno das células-tronco. Em um congresso em Whistler, na Colúmbia Britânica, em março de 2006, o cientista da Universidade de Kyoto descreveu um procedimento que permitia “reprogramar” células extraídas de mamíferos adultos. Yamanaka reiniciou bioquimicamente as células adultas de volta a um estado semelhante ao embrionário sem precisar destruir os embriões. Ele as chamou de “células-tronco pluripotentes induzidas” (iPS, na sigla inglesa). Um ano depois, tanto Yamanaka quanto Thompson, de Wisconsin, relataram separadamente terem criado células iPS de tecidos humanos.

Entre os participantes do congresso estava Eggan, especialista em reprogramação celular em Harvard. Na verdade, ele já alimentava a ideia de cultivar doenças, lançando vários projetos para reverter biologicamente células adultas ao estado embrionário, permitir sua replicação e colher células-tronco da cultura resultante. Mas ele trabalhava “à moda antiga”, aplicando a mesma técnica de clonagem que criara a ovelha Dolly. Eggan tirava o núcleo de uma célula adulta, como as da pele, e o implantava em um óvulo não fertilizado e com o núcleo removido. A clonagem era ineficiente e bastante controversa se a intenção fosse reprogramar células humanas – ainda mais porque implicava encontrar mulheres dispostas a doar seus óvulos para o procedimento.

Com a abordagem de Yamanaka, Eggan e sua equipe conseguiram fazer a técnica de iPS funcionar em um experimento com células humanas no verão de 2007. Estava tudo pronto para testar o conceito de doença cultivada em laboratório. Wendy e seus colegas de Columbia coletaram as células das duas irmãs croatas e de outros pacientes com ELA já prevendo sua utilização nos experimentos de clonagem de Eggan. Com financiamento privado, o Projeto ELA criou um laboratório especial próximo a Columbia onde os pesquisadores havia meses estocavam linhagens de células de pacientes (incluindo as irmãs idosas). De repente, as células iPS ofereciam chance de êxito. “Aquilo foi obra do destino, porque começamos a coletar células cutâneas humanas com um experimento bem diferente em mente”, conta Estess, do Projeto ELA.
A joia da coroa entre todas essas primeiras linhagens celulares com ELA era a da irmã croata mais nova e mais doente, identifi cada como paciente A29. As células cutâneas das irmãs foram convertidas com sucesso em células nervosas, mas a idade e o grau da doença na paciente A29 demonstraram que a técnica iPS poderia ser usada para a produção de células que refletissem uma doença grave e crônica. “Escolhemos essas amostras porque eram as pessoas mais idosas em nosso estudo”, conta Eggan. “Queríamos provar que é possível reprogramar células mesmo de uma pessoa muito idosa e doente há bastante tempo. Elas eram um caso especial.”

Os resultados apareceram na edição de 29 de agosto de 2008 da revista Science e foram saudados como um marco científico. A ideia de usar células-tronco para criar uma doença em laboratório prometia acesso a células que, de outra forma, eram difíceis ou impossíveis de obter, como os neurônios motores característicos da ELA e da atrofia muscular espinhal, as células cerebrais de várias doenças neurodegenerativas e as células pancreáticas típicas do diabetes juvenil.

CÉLULAS-TRONCO SOB MEDIDA

Nos últimos dois anos, a colaboração entre Columbia e Harvard produziu nada menos que 30 linhagens celulares humanas específicas da ELA. Muitas delas capturam mutações únicas encontradas em pessoas com casos bastante raros e severos da doença. Mais importante, o método de cultivar doenças em laboratório começa a mostrar seu potencial, dando pistas sobre a natureza dos males. Com as células das irmãs, por exemplo, os pesquisadores identificaram caminhos moleculares que parecem associados à morte de neurônios motores, o que ocorre quando elas são envenenadas por outra classe de neurônios chamados astrócitos. Com os dois tipos de neurônios na placa de Petri, os cientistas estão procurando por compostos terapêuticos capazes de bloquear a atividade tóxica dos astrócitos ou melhorar a sobrevivência dos neurônios motores.

Em janeiro de 2010, pesquisadores do laboratório do Project ALS iniciaram uma varredura preliminar de cerca de 2 mil compostos nos neurônios motores de humanos com ELA. Eles tentavam verificar se alguma das moléculas prolongaria a sobrevivência das células nervosas que continham o gene alterado da doença. Esse programa piloto reflete uma abordagem nova na busca por drogas: os pesquisadores da ELA começaram experimentando compostos já aprovados pelo Food and Drugs Administration (FDA) para tratar outras doenças. A esperança é que eles encontrem uma molécula já testada e segura para humanos, que possa ser rapidamente adaptada para a doença dos neurônios motores. Seguindo trajetória paralela em Harvard, Rubin identificou quase duas dúzias de pequenas moléculas que melhoram a sobrevivência dos neurônios motores. A Spinal Muscular Atrophy Foundation está atualmente testando uma das moléculas em um modelo animal de atrofia muscular espinhal.

Um indicador de que as células iPS oferecem uma abordagem promissora para a descoberta de drogas é o fato de que Rubin não está mais dando com a cara nas portas das empresas farmacêuticas. Desde que os pesquisadores de Columbia e Harvard estabeleceram o princípio de doença cultivada – em que se podem produzir neurônios com a carga genética de uma pessoa falecida –, as empresas é que têm batido na porta dele. Sem nomear empresas específicas por motivos de confidencialidade, ele conta: “Eu diria que, das principais indústrias farmacêuticas, todas agora se interessaram por essa abordagem”. O entusiasmo contagiou a biotecnologia: vários dos pesquisadores da história da doença cultivada em laboratório, incluindo Eggan e Rubin, se envolveram em uma empresas californiana de biotecnologia chamada iPierian, uma entre várias novatas, incluindo a Cellular Dynamics International e a Fate Therapeutics, que estão adaptando a tecnologia iPS para a descoberta de drogas.

Enquanto isso, mais e mais pesquisadores de células-tronco perseguem o conceito de doença cultivada. Logo após a publicação sobre a ELA em 2008, um grupo do Instituto de Células-Tronco de Harvard relatou ter usado a técnica de iPS para criar culturas de células de pacientes com diabetes juvenil, Parkinson e outros males. E no final de 2008, pesquisadores de Wisconsin liderados por Clive N. Svendsen criaram em laboratório neurônios motores de um paciente com atrofia muscular espinhal.

Quando perguntei aos pesquisadores de Columbia e Harvard se as duas irmãs croatas sabiam da pesquisa que brotou das células que haviam doado, ninguém confirmou. Fiquei sabendo que as irmãs ainda estão vivas, segundo a filha da paciente A29, que concordou em falar desde que seu nome e o de sua família permanecessem anônimos. A irmã mais velha, agora com 93 anos, permanece essencialmente livre dos sintomas da ELA; de acordo com sua sobrinha, ela ainda “mora sozinha, vai a todo lugar, faz compras, cozinha, varre e limpa”. A irmã mais nova, a paciente A29, fez 85 anos em junho passado; apesar de ter ELA, consegue se mover “fraca e vagarosamente” e está “agradecida” por ter tido a oportunidade de ajudar.

Ainda assim, o fardo cruel da família nunca parece distante e realça a urgência sentida por aqueles que poderiam se beneficiar da nova abordagem de células- tronco para a descoberta de drogas. “Sou relativamente jovem”, diz a filha da paciente A29, ela mesma diagnosticada com ELA em 2002. “Temos medo de que a doença comece a se manifestar mais cedo com o passar das gerações. Sentimos-nos um pouco como...” – ela pausa para se recompor dos pensamentos inevitavelmente sombrios – “em uma corrida contra o tempo. Eu mesma tenho uma filha adolescente, e isso pesa muito em minha mente e meu coração.”

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